quarta-feira, 6 de abril de 2011

Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; - depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar. Minhas mãos ainda estão molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas. O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio... Chorarei quanto for preciso, para fazer com que o mar cresça, e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desapareça. Depois, tudo estará perfeito; praia lisa, águas ordenadas, meus olhos secos como pedras e as minhas duas mãos quebradas.

Traze-me um pouco das sombras serenas que as nuvens transportam por cima do dia! Um pouco de sombra, apenas, - vê que nem te peço alegria. Traze-me um pouco da alvura dos luares que a noite sustenta no teu coração! A alvura, apenas, dos ares: - vê que nem te peço ilusão. Traze-me um pouco da tua lembrança, aroma perdido, saudade da flor! - Vê que nem te digo - esperança! - Vê que nem sequer sonho - amor!

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida a minha face?

Carlos Drummond de Andrade

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